Já dizia
minha avó “Cuidado, Maria Elis, com o que você pede aos céus. Um
dia seus pedidos podem ser atendidos, e você pode não gostar do
resultado”. Palavra de avó é feito praga. É bater e valer, feito
aqueles dias em que elas dizem “leve um guarda-chuva, porque deve
chover” e você olha o céu sem nuvens e pensa “bobagem!”. Na
certa vai chegar em casa ensopada.
Pois bem,
conheci o Vicente nas férias de janeiro, quando fui visitar minha
mãe. Ele estava passando uma temporada na minha cidade. E cidade
pequena é assim, chega um forasteiro e a população toda é só
cochichos. Logo fiquei sabendo que ele era estudante de Medicina
Veterinária, gostava de cuidar de animais pequenos e já tinha
tirado espinho da pata e cuidado de peladeira de uns 4 ou 5 cachorros
de rua dali das redondezas. Tinha os cabelos lisos e castanhos,
cílios grandes e um sorriso aberto o tempo todo.
Nos
esbarramos na fila da padaria. Me deixou passar na frente, mesmo
estando com uns cinco produtos a mais que ele. Enrubesci, como de
costume, e abaixei os olhos. Meio sem graça ele puxou assunto e,
quando percebi, já estava na porta de casa agradecendo a gentileza
por ele ter me ajudado com as sacolas.
Nos
encontramos todos os dias a partir daí todos os dias por volta das
três pra tomar um sorvete e bater um papo no banco da praça. Ritual
de cidade pequena. Ele me contou que o pai foi ausente, tivemos sobre
o que conversar, afinal o mesmo acontecia comigo. Disse também que
demorou vinte e quatro anos para a mãe enfim revelar a identidade do
pai, e que resolveu seguir numa busca pelo rapaz, que agora seria um
senhor, responsável por metade dos seus cromossomos. Ele tinha a voz
mansa, uma gargalhada gostosa e, por um momento, eu fiquei na dúvida
se aquilo era só uma boa amizade começando. Pensei nele antes de
dormir, e durante as refeições. Mais uma paixonite não, não podia
ser! De fato, não podia...
Muitas
tardes e papos mais tarde eu resolvi que não faria mal chamá-lo pra
alguma coisa mais, que mal haveria de acontecer? Calcei uma
sandalinha, dei uma caprichada no gloss e segurei as borboletas no
estômago.
Encontrei
Vicente uns quinze minutos depois, sentado na escadaria da igreja, de
cabeça baixa. Me aproximei e perguntei por fim o que havia de
errado. Ele pediu que eu sentasse.
- Lis,
você não faz ideia do quanto meu tempo aqui tem sido divertido,
muito disso é por sua causa. Todas as histórias que eu te contei,
bom, eu não sou muito bom em me abrir com ninguém, não assim...
principalmente sobre o cara que é meu pai. Ou deveria ter sido.
- Eu
imagino, eu também tenho lá minhas travas pra falar nesse assunto.
É mais fácil quando a gente encontra alguém numa situação
parecida.
- Verdade...
eu te disse também que resolvi procurar esse cara, e não é a toa
que eu vim parar aqui. Fui seguindo pistas, histórias de vizinhos,
conhecidos da minha família, e todo esse trajeto me fez chegar
nesse lugar. Daí eu conheci você, que me contou toda sua história,
suas aflições. Já reparou como a gente é parecido?
- Claro
que reparei, nós temos uma história parecida, isso nos torna um
tanto comuns um ao outro.
- Não
é disso que eu tô falando. Bom, disso também, mas, mais do que
isso. Olha seu dedo do pé. É mais curto que os outros. E você é
alérgica a carne de porco. E tem os cílios grandes.
- Sim,
eu sei disso. O que é que isso tudo tem a ver com tudo?
- Eu
também tenho. Olha só – ele desamarrou o tênis e descalçou a
meia do pé direito. Vê? Igual ao seu. Repara nos meus olhos –
como se eu já não tivesse mergulhado neles desde o princípio,
pensei.
Tremi por
um instante, não queria ouvir mais nada.
- Eu
sou seu irmão, Lis. A gente veio do mesmo lugar. A gente passou as
mesmas coisas por culpa da mesma pessoa. E a gente não pode se dar
nem ao luxo de comer bacon por causa dele também.
Eu não
sei dizer o que aconteceu naquela hora. Meu cérebro congelou, meu
coração doeu e uma raiva imensa me inundou. Só conseguia lembrar
de quando era pequena e, antes de dormir, rezava para o santo que
estivesse acordado me mandar um irmão mais velho pra cuidar de mim.
E lembrei da minha avó. Eu apresentei o vicente pra minha avó. E
ela reparou nele com curiosidade. Ela percebeu alguma coisa. Eu sei
que percebeu.
Acho que
deixei Vicente falando sozinho sentado na escadaria da igreja. Saí
sem rumo certo tentando não derramar tudo aquilo pelos olhos. Só
caí em mim quando percebi que estava sentada no sofá forrado com
uma das colchas de retalhos que minha avó adorava fazer. Eu
realmente precisava de alguém pra conversar...