quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Dos pedidos de Natal - Ana Maria


24 de Novembro de 1995


Papai Noel, sou eu de novo, a Ana Maria.

Prometo que neste natal essa vai ser a única cartinha que escrevo. Meu irmão disse que ninguém da sua fábrica agüenta mais minhas cartas e que se cada criança fizesse como eu e mandasse cinco cartinhas só porque foi mudando de idéia, então uma hora o natal ia acabar de vez. Eu não quero que o natal acabe de vez, não mesmo!

Ontem meu irmão disse que o senhor não existe e que quem come os biscoitos que eu faço pro senhor todo ano é o Nicolau, meu cachorro. Ele disse que meus biscoitos ficam tão ruins que ser humano nenhum seria capaz de comê-los sem perder pelo menos três dentes e quatro dias de trabalho. Eu não acreditei nele... Bom, eu quase acreditei na verdade. E fiquei muito triste, mas a minha amiga Lis me fez entender que era tudo bobeira dele, que ele prefere não acreditar porque tem medo de mágica. E tem mesmo! Uma vez, no aniversário do meu primo Miguel, ele correu pro colo da minha mãe quando percebeu que a parte divertida da festa eram uns truques feitos por um mágico de cartola e varinha. O bobo sempre acha que vai ser transformado em lagartixa. Ele também tem medo de lagartixas, mas se eu contar isso pra alguém ele me dá um cocão na cabeça.

Então, aí a Lis me disse que o senhor é mágico, né! Porque só mágica pra conseguir entregar presentes pra tantas crianças numa noite só. Então eu entendi que é bobeirice do meu irmão falar que não existe nem Papai Noel, nem elfos ajudantes, fábrica de brinquedo e tudo mais.

Daí eu pensei, bom, se o senhor é mágico, então eu posso pedir pra nevar no natal que vai acontecer. Sempre quis um natal com neve... pra fazer anjos no chão e bonecos com nariz de cenoura. E seria legal poder jogar bolas de neve na cara do meu irmão! Mas a minha mãe falou que o senhor não pode fazer nevar num país tropical por causa do frio, e as pessoas e os bichinhos ficariam doentes. Então mudei de idéia.

Eu podia pedir mais uma caixa grandona de bombons de nozes, mas a vovó disse que vai me fazer uma casinha de doces, igual a da historinha de Joãozinho e Maria... se eu pedir mais doces mamãe vai esconder todos e não me deixar comer nenhum. Ela diz que é esse açúcar todo que eu como que me deixa elétrica e com problemas pra dormir. Eu não acho.

Então eu acho que eu vou querer mesmo uma bicicleta laranja com uma cestinha de flores na frente, porque a Nana também vai pedir uma, só que verde que eu sei, e a gente vai ensinar a Lis a andar na dela que ta parada no quartinho desde que ela ganhou. Ela tem que perder o medo de tirar as rodinhas, né. E como a minha bicicleta ta muito velhinha e pequena eu quero uma nova.

Então tá, Papai Noel. Um feliz natal pro senhor e cuida bem das suas renas.

Ah, posso pedir também pro senhor mandar uma coleira laranja pro Nicolau? A minha mãe só gosta de comprar vermelhas.

Desde já agradeço. (aprendi isso lendo as cartas que chegam pra minha mãe da escola.)

Um abraço.

Ana M.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

"Eles passarão. Eu passarinho!"


O pássaro voando está em sua constância. O voo é um estado, o voo é o que faz o passaro ser, o resto só passa.
O pássaro não passou ao lado de minha janela, minha janela passou ao lado do pássaro. Assim como a rua passa por mim enquanto ando, ou o papel passa pela caneta enquanto escrevo.
Eu também sou pássaro voando, deixando para trás um caminho de letras soltas por onde passo, por onde passam por mim.




(Título: fragmento de "Poeminho do Contra", de Mário Quintana)

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Das desculpas em cataventos


Tudo que vem que o vento traz,
traz histórias ao vento pro tempo contar
O que houve, o que haverá
Do que foi, do que fará
E o que há de ser, será

E se o vento tudo traz
e tanto tanto ainda trará
Então cata-vento não é só pra vento pegar
Deve ser também cata-sonhos
cata-palavras
cata-memórias
e tudo mais que se pode no vento catar...



Brincando de versificar, em desculpas por um certo Tonho que deixou a desejar, para o colega de palavra, cataventado como só, @arautonho.

Da urgência

Depois das quase quinze ligações não atendidas, ele retorna, enfim, perguntando assim sem pressa "O que é tão urgente afinal?".
Talvez não seja nada tão urgente, afinal. Talvez não queira falar nada ou queira, por que não, falar tudo. Talvez seja só um dia como outro qualquer em que, diferentemente de outro dia qualquer seja tão necessária aquela ligação. Talvez só um alô e baste, talvez meia hora na linha e não é suficiente. Talvez só escutar a voz pra não se estar mais só.
Talvez precise só de alguém que se sente junto de pernas cruzadas em cima de um sofá, azul ou não, para falar de qualquer coisa, para falar do que não foi, para falar do que deveria ter sido, para matar o tempo, para chorar as mágoas e as proezas, para rir das desgraças e gritar as alegrias, para esquecer, ou talvez só mesmo para lembrar.
Talvez só precise de uma ligação e pronto, e ponto, e depois tututu - do telefone, do coração.
Talvez seja só isso essa urgência toda.
Só talvez.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Sobre muito mais que só mais uma de amor


Para nós, aquele amor de sonhar acordado, sentados num banco de uma velha praça só esperando o pôr-do-sol chegar, com risos e sorrisos soltos, gargalhando desse sentimento, e continuar junto hoje, pra sempre e mais um dia.
Pra eles, também.



"Liberdade na vida é ter uma amor pra se prender."
Fabrício Carpinejar

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Nota da Autora

Sobre Marias e Retalhos são textos que chegaram a ganhar um blog só pra eles, mas nem sempre se tem tempo suficiente para administrar tantos blogs e diferentes escritos, além de toda a vida que acontece do lado de fora desse mundo virtual. Então, resolvi trazer minhas Marias e meus retalhos pra cima do meu Sofá Azul, pra ficar tudo junto como uma coisa só, até porque, essas também são memórias inventadas num dia qualquer em que resolvi me deitar e colocar as pernas pra cima nesse meu móvel preferido.
Sentem-se à vontade, deleitem-se nessas lembranças e divirtam-se!
Abraços escritos.

Shantal-lis

Sobre Marias e Retalhos - II

De: nanita.m@mrmail.com
Para: maria.elis@mrmail.com ; nana_mariana@mrmail.com
Assunto: RE: Cores, costuras e saudades

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Bom dia, estrelitas!

Primeira coisa: Lis, como eu adoro seus e-mails. Um dia ainda monto um livro só com o que recebo de você. Precisa tanta poesia pra escrever pra gente?
Segunda coisa: ficaremos todos felizes se a Nana sair da toca e der notícias. Cadê essa mulher, meu Deus. Tem três dias desde o e-mail da Lis e até agora nada de respostas. Como?
Terceiro e mais importante: Lis, eu também ganhei uma colcha de retalhos feita pela sua avó. Chegou faz dois dias, mas só hoje minha mãe lembrou de me entregar. Ainda não entendi como um embrulho de papel laranja forte ficou perdido aqui em casa. Não sei se já comentei com vocês, mas a casa está de ponta a cabeça desde a história da minha mãe se casar. Enfim, a minha colcha também tem um retalho central com Três estrelas, meus olhos lacrimejaram assim que vi aquele detalhe. Sua avó é uma graça. Ela sabe como nos deixar perto uma da outra mesmo de tão longe. Quando você falou sobre as cores, os retalhos e as lembranças, bom, talvez tenha sido essa a intenção. Essa falta de tempo, esses tantos quilômetros que nos separam, tudo nos faz distanciar querendo ou não. Sinto saudades da época em que mesmo nos vendo todos os dias o dia todo ainda escrevíamos uma para outra cartas românticas e coloridas de amigas, trocando confissões e segredinhos cabeludos que hoje ao são nada além de bobeirinha de criança. Falando sério, mesmo nessa balbúrdia que tem sido o lugar em que vivo, acredito que procurando um pouco acho todas elas. Os papéis coloridos da Lis – que você roubava das gavetas de preparo de aulas da sua mãe – e os mil perfumes que a Nana arrumava pra borrifar nas dela – minha rinite alérgica quase me matava cada vez que recebia uma dessas.
Pensando nisso tudo agora, quanto tempo faz isso tudo, meu Deus!
E quando nós começamos a acreditar que éramos bruxas de verdade? Com poderes secretos que se manifestavam quando nós mais precisássemos. Afinal, com certeza fomos nós as responsáveis pelo piriri da professora Judite de matemática no dia da prova final. Lembra da nossa cara quando a diretora chegou à sala dizendo que a prova seria suspensa por causa de um súbito “desarranjo intestinal” que a professora arrumou? Aquilo foi a prova final dos nossos poderes. Fora os escorregões que o irmão da Nana levava, aqueles que nos deixavam com dor na barriga de tanto rir. Nossa vingança pelas repetidas maldades que ele fazia. Prefiro ainda acreditar que eram nossos poderes mágicos. Pra que lembrar que a dona Judite comeu uma maionese bichada no jantar da véspera da prova, ou reparar na coincidência dos tombos do João César que aconteciam sempre ás três e pouca da tarde, bem na hora em que a dona Inês inventava de lavar a cozinha. Tapado!
E as Três Marias... isso foi coisa do seu Nestor né? “Lá de longe vêm as Três Marias, uma ao lado da outra, sempre juntas, sempre arteiras, sempre perguntando pelas revistas novas, antes para fazer boneca de papel, agora para suspirarem pelos retratos desses moços estrangeiros. Pobres meninas. Pobres de nós que mal lembramos como era ser assim.” E a gente deu foi trabalho pra ele viu.
Bom, fato é que o tempo de hoje é curto demais e eu já vejo um certo atraso em cima de mim.
Lis, agradeça sua avó pela colcha caso fale com ela antes. E, Nana, aparece logo contando qual foi a cor do pacote da sua colcha, porque é claro que você ganhou uma também. E se for verde berrante, você me deve um bombom de nozes, morcega.

Abraços apertados!

Ana M.

Sobre Marias e Retalhos - I

De: maria.elis@mrmail.com
Para: nanita.m@mrmail.com ; nana_mariana@mrmail.com
Assunto: Cores, costuras e saudades

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Ei Ninha! Ei, Nana!

Hoje aconteceu uma coisa que me fez logo querer contar para vocês.
Vô Nestor chegou hoje, vai ficar aqui em casa mais ou menos uma semana por causa dos exames que eu tinha comentado antes. Minha avó não pode vir, disse que está muito atarefada, cheia de costuras pra entregar, por causa do bazar da igreja que ela sempre participa. Achei uma pena, mas eu sei o quanto ela se diverte ajudando. Sorte a dela que o vô Nestor não tem medo de fazer essas coisas sozinho. Às vezes isso me preocupa, fazer essas viagens longas sem companhia na idade dele. Mas ao mesmo tempo fico encantada! Parece até que ele tem a minha idade com todo aquele pique. Ah, ele perguntou por vocês. Disse que sente falta de nós três o dia inteiro na frente da banca de revistas dele, esperando as edições novas só por causa dos “moços estrangeiros”. Bem que era o melhor do dia!
Enfim, a vó Conceição não pode vir mas me mandou um presente. Adoro quando ela me manda presentes. Sempre sei que vai ser alguma coisa que eu vou querer levar comigo pro resto da vida. Lembram do porta moedas de pano com o nome bordado que ela fez pra cada uma de nós? Ando com ele até hoje na bolsa, ta meio surrado e desbotado, afinal a gente tinha o quê, uns onze anos quando ela fez? Pois é, dessa vez o que ela me mandou me fez viajar longe na minha imaginação e pensar em um monte de coisas boas. Ela me mandou uma colcha de retalhos. Uma colcha de retalhos tão coloridos, alguns lisos, outros estampados, e com um detalhe que eu sei que ela fez pensando em mim: no meio dela tem um pedaço de pano com o desenho de três estrelas em linha reta. As três marias, claro. Acho tão bacana quando ela faz essas coisas. Me bateu uma baita saudade quando eu vi esse detalhe. Depois disso, cada vez que eu olhava pra colcha já estendida na minha cama, cada retalho me lembrava alguma coisa que a gente já fez junta. Um laranja me lembrou do dia que eu rolei do alto do morro e apesar dos hematomas só fiquei com os joelhos esfolados – e vocês duas lá de cima rindo da minha cara, até resolverem perceber que o meu caso era uma pouquinho mais sério que isso. Por que o laranja? Acho que é porque o sol tava se pondo aquela hora e o céu tava lindo e colorido, com vários tons alaranjados.
Lembrei também do dia da bronca na diretoria, porque matamos uma aula inteira dentro do banheiro tentando fazer a Nana parar de chorar por ter perdido o ultimo dente de leite em sala de aula e tava morrendo de vergonha porque já tava com quatorze anos e ainda tinha dente de leite. Acho que foi o vermelho que me lembrou desse.
Sem esquecer do dia que a Ninha conseguiu realizar a proeza de ser a única a conseguir fazer aquele trabalho maluco de química que valia o trimestre e nós três tiramos nota boa por que era em trio. Esse foi culpa do azul! =)
Sei lá, são tantas as coisas que tenho na lembrança. E essa colcha me fez lembrar um pouco de tudo, como se cada retalho fosse uma história e as linhas que costuram uns nos outros fosse o resto que aconteceu na vida e nos trouxe até aqui. Só espero que a nossa colcha de retalhos nunca acabe de crescer.
Sinto falta de vocês. Vez ou outra me pego escrevendo sobre nós ou contando alguma dessas histórias pra alguém, com os olhos nostálgicos.
Acho que ninguém entenderia.

Saudades sempre,

Lis.



segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Da grande questão


- Dá pra voar em catavento?

- Depende do tamanho do catavento.

- Ou do tamanho da vontade de voar...

Sobre leis, boletins e cores


Tentaram me ensinar as Leis da Física, mas nunca tirei mais que seis. Vez ou outra um vermelho aparecia para colorir meu boletim, mas mesmo assim, nunca liguei.
Não sei de Lei da Física, porque aprendi primeiro a Lei da Imaginação, coisa que sempre tirei de letra, palavra por palavra, na ponta da caneta e desenhada no papel.
E assim ganhava um tanto de dez que, de azul em azul, coloriu as minhas notas, compostas cada vez que sento eu um certo Sofá, tão azul quanto deveria ser...

Da equação



Troco metade do meu coração por metade do seu, pra transformar dois em um sem deixar de ser par.
E a parte que faltar, logo que se encontrar, deixa dois corações de novo completos, sem juntos -como um só- deixarem de estar.


brincando de prosear em versos, ou seria versificar em prosa?

Do catavento


Então, voou alto no rabo de um catavento,
procurando lá de cima onde a felicidade sumida
achou lugar para morar...

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Dos escritos III - Das saudades


Dentre sua quase coleção de canetas de todos os tipos, escolheu a nanquim. Revirou um pouco o armário procurando o tinteiro e abriu a terceira gaveta da escrivaninha a fim de pegar também seu pequeno caderno de capa bordada e páginas amareladas. Jogou-se na cama e observou o sol se pôr lá fora. Foi com alguns dizeres de Caio Fernando de Abreu que começou a escrever.

"O meu dia só existe porque você existe dentro dele."

Era seu dia de saudade, sua tradição pessoal que começara a mais de uma década. No mesmo dia, a cada mês ela abria seu pequeno livro de memórias e escrevia mais uma vez. Teve mais o que colocar nas páginas desde a última vez que recebera uma carta da irmã perdida, naquele dia em que, sentada em seu Sofá Azul, sentiu um cheiro especial e sentiu seu coração saltar ao ouvir a campainha tocar. Era o carteiro que trazia nas mãos um envelope colorido com pequenos desenhos por todo ele. Mais um peça para seu quebra-cabeçass de lembranças inventadas durante todos aqueles anos.
A brisa que entrou pela janela a fez acordar do devaneio e voltar a atenção para o caderno. A ponta da caneta nanquim deslizava sobre o papel amarelo, manchando sua superfície com palavras em tinta preta.
E outro dia, após mais um.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Dos pequenos grandes sonhos


"São Geraldo Magela!" gritava a avó cada vez que a menina se jogava mais alto com o balanço.
A avó se desesperava de medo que a menina caisse. A menina gargalhava de felicidade cada vez que ficava mais perto do céu.
E olhava pras nuvens esperando um avião passar para acenar para todas aquelas pessoas tão sortudas que podiam voar.
Uma vez, ainda bem pequenininha, foi com a família ao circo. Sua emoção não podia ter sido maior ao começar o espetáculo das trapezistas. Os olhos preto-jabuticaba brilhavam como duas estrelas iluminando um imenso sorriso que conseguia se abrir mais e mais a cada movimento das artistas que brincavam nas alturas.
"Eu queria ser igual àquelas moças, pra poder gangorrar lá no alto..."
E toda noite ela sonhava com o céu, e todo dia ela tinha certeza de um dia ainda chegar lá. E tinha certeza que viraria, então, estrela.
Pra desespero da avó que, só São Geraldo Magela sabia o quanto, morria de medo de altura.

terça-feira, 5 de outubro de 2010


-Não vi Seu Tonho jogando damas na praça. Aconteceu alguma coisa com o homem?

-Não ficou sabendo? Seu Tonho morreu de coração faz quase que dois meses.

-Verdade? Coitado do Seu Tonho! E Dona Lola, deve estar de luto ainda, a pobre...

-De luto? Dona Lola agora só usa vestido florido e sapato vermelho! Resolveu dar uma de poeta e escrever poesia sobre a vida ruim que levava com o marido. E não é tudo! A distinta, na idade que tá, porque acha que tá inteirona, sai da missa e vai pra praça procurar namorado. Isso quando aparece na missa! De vez em quando dá um sumiço de dois dias, diz que vai visitar a irmã na cidade vizinha, mas tenho lá minhas desconfianças... Dizem até que pra mais da poesia a mulher deu pra escrever conto erótico e publicar nesse tal de computador.

-Valha-me Deus...

Fazendo o sinal da cruz, as duas senhoras caminham, fazendo mexerico a caminho da igreja.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Sobre caixas, sofás e memórias


Era dia e, deitada na cama, olhava as dúzias de estrelas fosforescentes coladas no teto. Em meio a um pensamento e outro, levantou-se de súbito e desceu as escadas que davam no primeiro andar. Saltitou em direção ao aparador do corredor de entrada e, tirando a tampa de um velho vaso vasculhou até encontrar uma chave manchada pela ferrugem. Observou os quatro cantos do objeto com um sorriso nos lábios, segurou-o firme e caminhou rumo ao armário debaixo da escada.

Torceu com facilidade a maçaneta dourada e, dentro do pequeno cômodo que guardava algumas caixas esquecidas, olhou mais uma vez a velha chave, arredou dois ou três quadros que pintara quando criança e encontrou enfim a porta branca empoeirada que não era aberta há tanto tempo.

Limpou com delicadeza a abertura e encaixou a chave com um pouco de dificuldade. Duas voltas para a direita e o estalo que escutou foi suficiente pra saber que havia conseguido. Abriu a porta suja e apreciou as escadas de madeira que davam pro velho porão em que tanto se divertira quando moleca. Acendeu a luz, ainda funcionava, e desceu.

Encontrou caixas e caixas sujas que guardavam coisas velhas, objetos de sua infância, as primeiras obras de sua mãe. Era um santuário de recordações. Deparou-se com o grande baú talhado que guardava os antigos figurinos de teatro de sua avó, mas o que ela procurava de fato estava por trás de tudo, no canto, coberto por uma gasta colcha de retalhos.

Quando percebeu o móvel guardado sob o pano, não teve dúvidas. Descobriu-o com pressa e sorriu como há tempos não fazia. Deu-se o direito de uma gargalhada ou duas e sentiu manifestar em todo o corpo a intensidade de todas as lembranças, histórias e sentimentos bonitos que guardava desde a última vez que estivera ali.

Era a primeira vez que voltara àquela casa desde que se mudara para estudar fotografia. Havia levado com ela sua primeira câmera que guardava com esmero, e emoldurado aqueles primeiros abraços descobertos com ela, mas aquele grande objeto em sua frente ainda não tivera a chance de carregar pra junto de si. Seu refúgio de menina, seu berço de fantasias, um pedaço de quem foi e agora o desejo de ser também o tudo que havia por vir.

Sem se preocupar com a poeira, com as teias de aranha ou mesmo os vestígios das traças, sentou-se nas macias almofadas de seu velho Sofá Azul e acariciou o tecido num tom de agradecimento. Encostou a cabeça de um lado e levou os pés agora descalços ao outro. Fechou os olhos e tornou-se novamente a pequena dona do seu colorido mundo imaginário de sonhos e pinceladas azuis, como seu sofá, o mundo que, por algum tempo, achou que nunca voltaria.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Da cor



Minha prosa é feita de pura poesia.
Minha poesia é feita da alma das cores.
Eu sou pura palavra,
pura alma,
minha aura
puramente colorida.

quarta-feira, 26 de maio de 2010


Poesia é a felicidade em si e a que mora dentro da tristeza.
É o lilás que rodeia minha prosa,
meu verso,
meus amores,
minhas cores...

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Lindo dia feio

Segunda é sempre segunda, a não ser quando é feriado e a gente pensa que se passaram dois domingos. O fato é que seguda é o chamado “dia daqueles”. É o carro que pifa no meio do caminho, é o mecânico que te enrola pra falar qual o problema com teu carro, é a peça que o mecânico te mandou comprar e que você não acha a certa… pode ser também o pagamento que foi menor do que o esperado, ou as contas que somaram mais do que deviam. Ou pode ser até o filho da mãe do seu banco que te deu um limite maior no cheque especial e no cartão de crédito justo quando você, que sente um imenso prazer em fazer compras, não pode de jeito nenhum pensar em gastar.

Pode ser também o dia em que você planejou resolver as pendências e precisou mais uma vez deixá-las pendentes porque o calor insuportável trouxe uma chuva da boa que te prendeu no trabalho. E olha que desa vez a culpa nem é do horário de verão… a culpa é toda da Segunda. Digo, da segunda-feira útil, porque as Segundas-feriado deixam essa façanha pra pobre da Terça.

Mas lembrando da nossa querda coleguinha Pollyanna, existe também o outro lado. Aquele em que no meio da nuvem mais feia da chuva a gente acha um buraquinho e vê o sol, como se tivesse olhando escondido pelo buraco da fechadura. E pode ser também o dia em que, no meio de uma descarga de dessabores, a pesoa do outro lado da linha (a única com a verdadeira paciencia para escutar todos os seus resmungos) te solta um “te amo”. Ou um bebê rechonchudo que você nunca viu mais gordo (ambíguo?) te lança um sorriso dentro do ônibus lotado. E, quando você já não aguenta mais aquele calor nauseante numa caminhada debaixo do sol a pino, bate aquela brisa fresquinha. O coração amolece, você (por um momentinho que seja) até esquece que é segunda e solta um sorriso digno de sábado.

Porque até o dia mais feio pode ser bonito se a gente tentar.


Escrito em 09/09/2009