sexta-feira, 29 de junho de 2012

Marias e Retalhos - Do inesperado (Lis)


Já dizia minha avó “Cuidado, Maria Elis, com o que você pede aos céus. Um dia seus pedidos podem ser atendidos, e você pode não gostar do resultado”. Palavra de avó é feito praga. É bater e valer, feito aqueles dias em que elas dizem “leve um guarda-chuva, porque deve chover” e você olha o céu sem nuvens e pensa “bobagem!”. Na certa vai chegar em casa ensopada.
Pois bem, conheci o Vicente nas férias de janeiro, quando fui visitar minha mãe. Ele estava passando uma temporada na minha cidade. E cidade pequena é assim, chega um forasteiro e a população toda é só cochichos. Logo fiquei sabendo que ele era estudante de Medicina Veterinária, gostava de cuidar de animais pequenos e já tinha tirado espinho da pata e cuidado de peladeira de uns 4 ou 5 cachorros de rua dali das redondezas. Tinha os cabelos lisos e castanhos, cílios grandes e um sorriso aberto o tempo todo.
Nos esbarramos na fila da padaria. Me deixou passar na frente, mesmo estando com uns cinco produtos a mais que ele. Enrubesci, como de costume, e abaixei os olhos. Meio sem graça ele puxou assunto e, quando percebi, já estava na porta de casa agradecendo a gentileza por ele ter me ajudado com as sacolas.
Nos encontramos todos os dias a partir daí todos os dias por volta das três pra tomar um sorvete e bater um papo no banco da praça. Ritual de cidade pequena. Ele me contou que o pai foi ausente, tivemos sobre o que conversar, afinal o mesmo acontecia comigo. Disse também que demorou vinte e quatro anos para a mãe enfim revelar a identidade do pai, e que resolveu seguir numa busca pelo rapaz, que agora seria um senhor, responsável por metade dos seus cromossomos. Ele tinha a voz mansa, uma gargalhada gostosa e, por um momento, eu fiquei na dúvida se aquilo era só uma boa amizade começando. Pensei nele antes de dormir, e durante as refeições. Mais uma paixonite não, não podia ser! De fato, não podia...
Muitas tardes e papos mais tarde eu resolvi que não faria mal chamá-lo pra alguma coisa mais, que mal haveria de acontecer? Calcei uma sandalinha, dei uma caprichada no gloss e segurei as borboletas no estômago.
Encontrei Vicente uns quinze minutos depois, sentado na escadaria da igreja, de cabeça baixa. Me aproximei e perguntei por fim o que havia de errado. Ele pediu que eu sentasse.

- Lis, você não faz ideia do quanto meu tempo aqui tem sido divertido, muito disso é por sua causa. Todas as histórias que eu te contei, bom, eu não sou muito bom em me abrir com ninguém, não assim... principalmente sobre o cara que é meu pai. Ou deveria ter sido.
- Eu imagino, eu também tenho lá minhas travas pra falar nesse assunto. É mais fácil quando a gente encontra alguém numa situação parecida.
- Verdade... eu te disse também que resolvi procurar esse cara, e não é a toa que eu vim parar aqui. Fui seguindo pistas, histórias de vizinhos, conhecidos da minha família, e todo esse trajeto me fez chegar nesse lugar. Daí eu conheci você, que me contou toda sua história, suas aflições. Já reparou como a gente é parecido?
- Claro que reparei, nós temos uma história parecida, isso nos torna um tanto comuns um ao outro.
- Não é disso que eu tô falando. Bom, disso também, mas, mais do que isso. Olha seu dedo do pé. É mais curto que os outros. E você é alérgica a carne de porco. E tem os cílios grandes.
- Sim, eu sei disso. O que é que isso tudo tem a ver com tudo?
- Eu também tenho. Olha só – ele desamarrou o tênis e descalçou a meia do pé direito. Vê? Igual ao seu. Repara nos meus olhos – como se eu já não tivesse mergulhado neles desde o princípio, pensei.

Tremi por um instante, não queria ouvir mais nada.

- Eu sou seu irmão, Lis. A gente veio do mesmo lugar. A gente passou as mesmas coisas por culpa da mesma pessoa. E a gente não pode se dar nem ao luxo de comer bacon por causa dele também.


Eu não sei dizer o que aconteceu naquela hora. Meu cérebro congelou, meu coração doeu e uma raiva imensa me inundou. Só conseguia lembrar de quando era pequena e, antes de dormir, rezava para o santo que estivesse acordado me mandar um irmão mais velho pra cuidar de mim. E lembrei da minha avó. Eu apresentei o vicente pra minha avó. E ela reparou nele com curiosidade. Ela percebeu alguma coisa. Eu sei que percebeu.
Acho que deixei Vicente falando sozinho sentado na escadaria da igreja. Saí sem rumo certo tentando não derramar tudo aquilo pelos olhos. Só caí em mim quando percebi que estava sentada no sofá forrado com uma das colchas de retalhos que minha avó adorava fazer. Eu realmente precisava de alguém pra conversar...

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