domingo, 26 de fevereiro de 2012

Amarelos, sorrisos e azuis

Meu sofá não foi sempre azul. Não foi.
Quando tinha, sei lá, uns seis anos ou sete, na sala do grande apartamento tinha um sofá velho. Lembro de ter sido de algum parente não muito próximo, sei lá. Essas coisas que vão passando de um pro outro e por fim das contas ninguém nunca sabe de onde veio. O sofá era amarelo meio vômito, esquisito. Mas minha mãe gostava. Ela tinha alguma memória com aquele sofá, coisa que nunca teve coragem de contar pra mim ou pra minha irmã. Ou pra quem quer que fosse.
Minha mãe sempre foi do tipo caladona, mesmo antes da depressão ter sido oficializada. Mas ela não foi sempre triste, tinha o sorriso mais bonito do mundo pra mim. Eu via as fotos de quando ela era criança, aquelas fotos amareladas com o tempo, feito o velho sofá amarelo vômito, e eu brincava de imaginar as coisas que ela fazia, as artes que aprontava. Minha mãe sempre foi uma mulher linda, apesar das memórias que guarda.
Um dia teimei, quebrei a regra sagrada da sala e num dia tedioso peguei minhas aquarelas, pincéis e guaches e resolvi pintar quadros na sala. Arredei com pouca dificuldade minha mesinha de atividades e me sentei confortável no sofá de histórias da minha mãe. Busquei o potinho d'água para lavar o pincel manchado de azul do céu que desatinei a desenhar. Esfreguei as cerdas no fundo do pote, me diverti com o barulho da água, comecei a rir do pequeno rodamoinho que se formou no copo. Não vi o tempo passar. Assustei com o barulho da porta se abrindo, mamãe voltava do mercado, deixei cair tudo. Tinta, pincel, água azul. Deixei cair tudo no sofá que deixou de ser tâo vômito assim.
Ela ficou em estado de choque por uns dois minutos talvez, mas não gritou, nem um berrinho sequer. Foi para a cozinha deixar as sacolas, voltou com um pano seco e começou a secar a água do chão. Recolheu os potes de tinta e a tela meio pintada, guardou meus pincéis no armário. Tentei me desculpar, com os olhos marejados pela estupidez que tinha feito. Ela não deixou. Levantou a mão direita como quem diz "não precisa dizer nada", e olhou mais alguns instantes para o sofá molhado, agora meio amarelo, meio azul ralo de guache.
Sentou-se no chão e admirou o móvel. Me olhou nos olhos e sorriu. "não é uma linda cor esse azul?". Sorri sem graça e fiz que sim com a cabeça. Ela sorriu seu sorriso mais bonito e me pegou pela mão. "amanhã mesmo mandarei reformar. Que você acha de começar novas memórias num sofá bem azul, que seja alegre como um céu sem nuvens? Já estava mesmo cheia desse amarelo cor de vômito. Parece vômito, não acha?"
Abracei-a sem dizer coisa alguma. E guardei na memória aquele sorriso mais bonito, a minha primeira memória desse sofá de histórias, esse sorriso que sei que ainda existe em algum lugar dentro dela, e que espero voltar a ver algum dia.

Um comentário:

  1. Oi Shantallis, vc pode me mandar seu e-mail para eu entrar em contato com vc? Procurei aqui no blog mas não achei. Boa semana pra vc! Que essa cor de céu todo azul perdure.

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